domingo, 24 de maio de 2020

01. O silêncio da pata.


Sexta feira de um final de novembro de 1987. Reunião de Staff da Diretoria de Recursos Humanos da Brastemp em São Bernardo do Campo, presentes todos os gerentes divisionais e departamentais da área. Eu exercia, então, as funções de Gerente do Departamento de Benefícios daquela unidade fabril. Tudo normal, tudo tranquilo se ao final da reunião o Diretor Corporativo de RH do grupo Brasmotor, holding da Brastemp, não tivesse pedido a atenção de todos os presentes para com um problema que ele vinha enfrentando com a filial de Manaus.
Segundo ele o Gerente de Divisão de Recursos Humanos da Multibrás da Amazônia não vinha conseguindo resolver os problemas locais, com muitas paralisações e movimentações sindicais e uma grande falta de motivação entre os colaboradores. Isto estava prejudicando fortemente o clima organizacional, e a produtividade. E por isto ele ligava praticamente todos os dias, reclamando e pedindo ajuda.
E o Diretor solicitou ao final que precisava de alguém com muita experiência, principalmente na área sindicalista, boa comunicação e paciência para mandar para Manaus. E tinha pressa porque queria viajar para o exterior no final do ano e, se possível, com este problema resolvido.
Eu, que nunca perdi uma oportunidade de crescimento profissional e que sempre fora votado para desafios e aventuras, mal esperei o Diretor terminar, com medo que outro gerente respondesse primeiro, levantei-me e disse muito seguro:
-  Senhor, eu tenho alguém para indicar, alguém pronto e preparado para grandes empreitadas: Eu mesmo.
Prontamente, o Diretor me questionou:
- Gilberto, considerando você mora a cinco minutos da empresa, que sua esposa é professora efetiva do Estado e leciona a três quadras de casa e, principalmente, que você está muito bem aqui em São Bernardo, me dê dois motivos para que eu o libere para Manaus.
Já estando com a resposta na ponta da língua, afirmei com convicção:
-  Senhor Diretor, primeiro motivo: Serei promovido a Gerente de Divisão, com direito a Bônus Plan, carro designado, plano de benefícios melhor e, evidentemente, um aumento salarial. Segundo motivo: Se o senhor ligar para minha esposa agora e contar da minha decisão, ela vai perguntar se já pode começar a preparar a mudança.
Neste momento, meu companheiro e amigo Lemos disse ao diretor:
- Não perca seu tempo, senhor, conheço a esposa dele e ele fala exatamente a verdade.
O Diretor, com fisionomia mais alegre me disse então:
- Vá agora até Agência de Turismo (interna à Empresa) mande emitir duas passagens para Manaus, para você e sua esposa, e parta amanhã de manhã. Fique por lá uma semana, veja tudo, da Empresa e da cidade, e na volta, diga se ainda está disposto a mudar.
Em 1o. de janeiro de 1988 assumi o cargo em Manaus, onde deveria ficar por dois anos mas tive que ficar mais oito meses até que surgisse uma vaga na grande São Paulo, o que não foi muito fácil porque em 1990 todas as empresas passavam por um achatamento em suas estruturas.
Durante o tempo em que lá permaneci, aproximei-me dos líderes sindicais, melhorei sensivelmente os canais de comunicação e praticamente eliminei as paralisações e movimentos sindicais. Além disto, implantei planos de treinamento e desenvolvimento, principalmente para gerências e Chefias, implantei projetos motivacionais, especialmente na área de esportes e lazer que eu já tinha experiência dos bons resultados na quebra de conflitos internos e aproximação entre supervisores e subordinados. E nos dois anos e oito meses que lá fiquei em nenhuma oportunidade liguei para o Diretor, nem para reclamar, nem para buscar elogios já que sempre tive na mente que aquilo era minha obrigação. Eu só tinha ido para tão longe para resolver os problemas.
Muito bem, para voltar tive que aceitar um cargo numa outra unidade fabril, recém comprada e falida, já com planos de desativação. Na primeira vez que me encontrei com o Diretor que aprovou minha ida para o Amazonas, ele disse:
- Você teve sorte. Durante todo o tempo que você ficou em Manaus nada de grave aconteceu. Parabéns.
Dias depois, conversando com meu amigo Lemos, relatei os fatos de lá e a fala do Diretor e foi então que ele me contou o caso do “Silêncio da pata”, perguntando-me:
- Você já reparou que a pata bota um ovo enorme e muito mais rico que o ovo da galinha mas ninguém dá valor ao ovo da pata. E ele mesmo respondeu. É que a galinha faz uma festa enorme quando bota um ovo e chama a atenção de todos, enquanto a pata bota quietinha, lá num canto, e ninguém nem percebe. Ora, Gilberto, enquanto em Manaus, a cada projeto bem-sucedido, a cada ocorrência vencedora, a cada solução de problema ou conflito, você deveria publicar, mandar registros para todos os gerentes locais e gerais, principalmente para nosso Diretor Corporativo.
Não só o entendi como concordei.
Isto foi há vinte e cinco anos, mas nunca esqueci e divulguei durante muito tempo, principalmente para meus alunos de Administração.

02. Uma simples escolha.


1962, ano eu que eu deixei pela primeira vez a minha cidadezinha de interior para vir, como milhares de outras pessoas, para a capital do estado em busca de trabalho e de melhores oportunidades. Vim para a capital, como era costume se dizer, independente do município onde se ia morar; no meu caso fui direto para Santo André da Borda do Campo, no chamado ABC paulista que depois passou a abcd, abcdmr e outras siglas conforme o aglomerado ia crescendo. Santo André era então a locomotiva da Grande São Paulo devido ao grande número de grandes indústrias, como Pirelli, Firestone, Cofap, Rhodia, Valisere, Eluma, além de centenas de autopeças instaladas para abastecer as inúmeras montadoras de automóveis instaladas na região a partir de 1959.
Novembro de 1962, com 17 anos consegui meu primeiro emprego formal, com registro em carteira e tudo mais, no mesmo local onde meu pai já trabalhava há alguns meses exercendo as funções de mecânico de automóveis. A empresa, BRALO-DISTRIBUIDORA DE AUTOMÓVEIS LTDA., concessionária dos automóveis Willys Overland e Renault, para vendas e manutenção geral, levava o nome dos dois sócios: Senhor Mário BRAgança dos Santos e Senhor Renato di LOrenzo, pessoas cultas, educadas, que valorizavam muito os funcionários e que, desde o início, deram-me todo o apoio e confiança para aprender e desenvolver meu trabalho. Alguns meses depois éramos quatro da família trabalhando no lugar. Meu pai, eu, o Luís, na oficina, e o Quide, na seção de peças.
Ainda sem uma profissão definida e sem qualquer experiência no ramo, fui colocado desde o começo na recepção da oficina, com a função de atender aos clientes com problemas funcionais em seus carros, função atualmente chamada de Assistente Técnico, e me desenvolvi muito rapidamente sempre muito elogiado por patrões e clientes. Na verdade eu passava o dia “abrindo” e “fechando” Ordens de Serviço (OS), ou seja, eu anotava na OS todos os defeitos apontados pelos proprietários, ficha que acompanhava o veículo dentro da oficina e onde eram anotados todos os serviços realizados e as peças e/ou acessórios colocados. No final dos serviços eu calculava e somava todos os preços dos serviços, somava o valor das peças e acessórios utilizados e fechava a conta, emitindo o boleto de pagamento para o caixa.
Na Bralo, além dos patrões, eu me lembro com muita saudades de pessoas como senhor Arlindo Alves, Chefe do setor Willys, senhor Ikeda Kazuhiro, chefe do setor Renault, Carlão, chefe da funilaria, e funcionários como Francisco Barreto Silva, um dos cinco amigos de toda minha vida, que me auxiliava no início e que veio a me substituir quando saí da empresa, o Idyneu, chefe do setor de peças, o Nono, faxineiro e o Beiçola, muito alegre e craque de futebol.
Neste ambiente, muito bom por sinal, foi que eu tive a oportunidade de fazer minha primeira escolha importante.
Enquanto quase todos os funcionários trabalhavam de macacão escuro, na oficina e demais setores, eu trabalhava com uma capa toda branca, com golas verdes e logotipo no bolso. Era costume, todos almoçarem bem rápido e irem para um terreno baldio nos fundos da oficina jogar futebol. E eu, todos os dias, lá estava no meio dos outros. Pelo menos meia hora de correria, encontrões e agarrões que nos deixava suados e muito corados. Terminada a hora de almoço, eu corria para o banheiro, lavava bem o rosto, penteava os cabelos e voltava para o meu posto para atender os clientes. Observando meu comportamento e a responsabilidade do meu cargo, um dia meu pai me chamou, em casa, e disse sério:
- Gilberto, você sabe que você está indo muito bem na sua profissão e no seu cargo; você tem o respeito de todos, principalmente dos clientes e a confiança dos patrões mas o futebol da hora do almoço e a vivência direta com o pessoal da oficina vai acabar barrando o seu progresso. Você, mais cedo ou mais tarde, vai ter que escolher: Você pode continuar a sendo esta pessoa simples, amiga, participativa e terá muitos amigos e um excelente ambiente de trabalho, ou você pode se afastar deles e se aproximar mais da diretoria, assumindo uma postura de reserva e de comando, neste caso você terá muito mais oportunidades de crescimento, promoções e, em consequência, de conseguir melhores salários.
Talvez eu fosse ainda muito jovem e inexperiente para fazer uma escolha tão importante mas a verdade é que eu continuei jogando meu futebol de hora do almoço, almoçando junto com os operários e demorei muito para assumir um cargo de liderança.

03. Tirando a carteira de motorista.


1965, morando em Santo André e trabalhando ainda na Bralo, como Assistente Técnico e Faturista ao mesmo tempo, eu atendia os Clientes, anotava os defeitos que os carros apresentavam numa Ordem de Serviço que passava para o chefe de oficina, dependendo da marca: Se Willys para seu Arlindo Alves, se Renault para o senhor Ikeda Kazuhiro. Combinados prazos de conserto, eu chamava o motorista da empresa, entregava as chaves do carro, a Ordem de Serviço e pedia para colocar o automóvel para dentro da oficina.

Quando os carros ficavam prontos, o chefe de oficina trazia-me a Ordem de Serviço para fechamento. Eu pedia ao motorista que estacionasse o veículo na rua, por perto, calculava as despesas de peças e serviços e avisava o cliente que podia ir apanhar o mesmo.

De repente percebi que precisava tirar minha carteira de motorista. Afinal já havia concluído o serviço militar e já estava de posse do meu Certificado de Reservista, já tinha minha Carteira de Identidade, minha Carteira de Trabalho, meu Título de Eleitor; só faltava a Carteira de Motorista embora nem sonhasse um dia ter um automóvel.

Matriculei-me numa Escola de Condução e comecei a fazer aulas práticas pois não tinha qualquer experiência naquela atividade embora tivesse contato com veículos, todos os dias e a todo momento, mas a responsabilidade era muito grande.

Dois meses depois, meu orientador da escola disse que eu já estava preparado e que já podia marcar a data do exame junto ao Detran local. Fiquei muito feliz e dividi minha alegria com a família e os amigos. Só que o orientador, evidentemente profundo conhecedor dos meandros daquele tipo de serviço e dos costumes não muito “honestos” dos examinadores me avisou.

- Olha, você está muito bem preparado, mas é sempre melhor se prevenir contra alguma “intempérie” de momento; portanto, depois de todas as despesas que você já teve, logo que terminar o exame, dê um “agrado” para o examinador e sugeriu um valor equivalente aos atuais R$ 50,00.

Mesmo contra a vontade, nunca havia dado qualquer propina para conseguir o que precisava, porém entendendo que poderia ser reprovado injustamente e ter que fazer tudo de novo, no dia o exame coloquei uma nota do valor sugerido, dobradinha, no bolso da camisa e parti para o teste.

Cheguei ao local e encontrei o examinador já dentro do carro, o mesmo Volkswagen que eu havia me exercitado. Isto me acalmou e deu confiança. O oficial mandou que eu começasse. Confirmei que o câmbio estava em ponto morto, acionei a partida, liguei a seta e saí vagarosamente em primeira marcha, engatei a segunda e a terceira na sequência e fui seguindo, até  calmamente, por onde era orientado, parava, retomava a marcha, até que chegou o momento mais crítico daquele exame. Num determinado local, isolado e preparado para tal, duas estacas altas no chão com uma distância até razoável e a demarcação da baliza. O examinador mandou parar, desceu do carro, e me deu ordens para efetuar a baliza. Nem sei como, mas na primeira tentativa coloquei o carro no local com muita perfeição, fui autorizado a sair e encostar num espaço à frente. Tomei todo o cuidado para não estragar tudo, liguei a seta, saí e encostei; puxei o freio de mão e desliguei o carro. Acreditei que aquele seria o momento de entregar o “agrado” para o examinador, só que, quando abri a porta do carro e olhei para frente, o examinador já ia longe, fazendo anotações em uma prancheta.

Logo em seguida encontrei com meu instrutor que foi logo perguntando se eu havia entregue a propina. Após minha explicação de que não dera tempo de fazê-lo ele, preocupado me disse:

Infelizmente agora estamos nas mãos do examinador que, dificilmente aprova candidatos nesta situação; mas vamos aguardar, passe no nosso escritório amanhã, após as 12h00 para saber o resultado.

Quase não dormi naquela noite e não via a hora de ter a resposta. Meio dia e eu já estava na porta da Escola de Condução. Meu instrutor já me aguardava, sem escondera satisfação. O examinador havia me aprovado. Ao me entregar a Carteira de Motorista, meu instrutor, além dos parabéns, acabou me dizendo:

- Vai ser “pão duro” lá na casa do chapéu, mais uma vez a competência claro, com a sorte venceram. 

04. Começando a dirigir - Uma estratégia.


Conquistada a tão difícil, na época, Carteira de Motorista, eu precisava então começar a dirigir para adquirir experiência e confiança. Ter um automóvel próprio, nem me passava pela cabeça naquele momento, isto era coisa para gente muito rica. O que fazer?

Eu continuava trabalhando na Bralo, na mesma função de assistente técnico ou recepcionista, a empresa nunca me autorizou formalmente a dirigir os carros para e depois do reparo, eu também não me atrevia a tomar a iniciativa de movimentar os mesmos por conta própria.

Um dia me veio uma ideia.

À tarde, depois do expediente, eu sempre apanhava, num quadro específico, as chaves dos veículos prontos, estacionados na rua e pedia para o motorista guardá-los no interior da oficina antes de fechar os portões. Muito bem, todos os dias eu deixava no meu bolso a chave de dois ou três carros, esperava que o motorista guardasse os demais e fosse embora, como todos os trabalhadores da empresa. Chamava o vigilante noturno e dizia que tantos carros haviam ficado para fora, mas que ele não se preocupasse que eu os guardaria. Com a maior tranquilidade saía, pegava cada um dos automóveis, aproveitava para dar uma volta no quarteirão e  punha para dentro da oficina os Aero-willys, as Rurais Willys, os Renault Dauphines e os Renault Gordinis.

E assim começou minha carreira de motorista, que hoje chega a 55 anos e a muitos milhares de quilômetros, rodados nos 43 países que eu conheço.

05. Trabalho, futebol e cantoria.


Aos vinte anos, no ápice de minha forma física e com a grande paixão que eu nutria pelo futebol, comecei a ter portas abertas nas empresas que mantinham equipes oficiais e que disputavam torneios e campeonatos daquele esporte. Era muito comum, na época, grandes empresas contratarem bons atletas de futebol para trabalharem em suas linhas de produção, geralmente em trabalhos braçais devido à pouca formação técnica e cultural da maioria dos contratados, empregados que compunham seus times nos finais de semana.
Assim foi que no início de 1966 deixei a Bralo, de Santo André, e atendi a um convite da Vidrobrás - Indústrias Reunidas, de Mauá, fabricante de vidros para automóveis, que tinha o melhor campo de futebol da cidade e um excelente time de futebol que, naquele mesmo ano, sagrou-se campeão da Taça Cidade Mauá, que valeu-me a faixa de campeão mais bonita que tenho até hoje.
Naquela famosa indústria, além de jogar futebol, como já cursava o segundo ano do segundo grau, mesmo sem qualquer experiência, colocaram-me para trabalhar no setor de contabilidade tendo como supervisor Manuel Ribeiro Soares que já escrevia poesias e que motivou a entrar para caminho das Letras. Como aconteceria nos próximos empregos, de início todos elogiavam o meu futebol e nem exigiam muito da produtividade do meu trabalho, como era comum para com outros “boleiros”. Só que eu nunca soube ou não quis mesmo me aproveitar da situação e encostar o corpo; rapidamente aprendi minhas tarefas e as executava com excelência maior ainda do que dentro do campo de futebol. Se no gramado eu conquistei a comissão técnica e a torcida, no escritório eu percebia que crescia a admiração do meu gerente administrativo, Sr. Ignácio Tunkus e, principalmente do diretor geral da unidade, Dr. Bonomo, um engenheiro francês, ao mesmo tempo muito exigente e muito amigo e incentivador dos funcionários. Além disto o Dr. Bonomo era um apaixonado pelo futebol e estava na beirada do campo em todos os jogos da empresa.
Mas um dos fatos interessantes que marcaram minha passagem pela Vidro, assim chamávamos carinhosamente a empresa, ocorreu num sábado pela manhã, de um início de mês, quando fechávamos os dados contábeis do mês anterior para enviar à matriz na França. Fazíamos hora extra, eu e mais três funcionários da área e eu, que já era fã incondicional do Nélson Gonçalves, soltava a voz no salão quase vazio, em uma das canções daquele cantor quando olhei para trás e percebi, de pé, junto à porta, simplesmente o Dr. Bonomo, que raramente ia à fábrica nos finais de semana, olhando para mim e ouvindo com atenção. Quando o vi, evidentemente que parei de cantar e pude ouvir dele o seguinte comentário:
- Vilela, já sabia que você era um grande jogador de futebol mas que era, também, cantor nunca imaginei. Deu um sorriso, fechou a porta e foi embora.
Durante muito tempo passei longe da porta de sua sala de trabalho.

06. Ensinar para obedecer.


Final de 1966, Vidrobrás de Mauá. Tudo ia indo muito bem, eu jogava aos sábados à tarde pela equipe da empresa, quase sempre no seu próprio campo, mantinha sempre a regularidade técnica e era sempre elogiado por todos quanto a minha performance.
No trabalho, aprendera tudo que era necessário, desempenhava com gosto e boa qualidade todas as tarefas que me eram determinadas e acabei me tornando um exemplo de funcionário, citado sempre que se queria demonstrar competência para novos contratados ou para aqueles que estavam deixando a desejar quanto à produção. Dois fatos curiosos e interessantes ocorreram nesta minha passagem por aquela indústria.
O primeiro fato foi mais hilariante que negativo. Eu trabalhava na Contabilidade, setor de Livros e Notas Fiscais e era responsável por fazer o lançamento de todas as Notas de compra e de venda nos livros específicos; o que era feito manualmente na época, com uma caneta bic em livros enormes, lançando horizontalmente uma série de dados de cada nota: Número e data da NF, nome, cgc, município e estado do vendedor ou do comprador, tipo de venda, valor total da venda e data de pagamento, além da soma dos valores ao final dos lançamentos.
Como a matriz da empresa era na França e os livros não podiam sair do local onde era escriturado, ao final de cada mês, em função da inexistência de equipamentos de hoje como copiadoras, scanneres, etc..., eu tinha que efetuar a cópia completa e fiel de cada página dos livros, numa máquina de escrever com um enorme “carro” e em quatro vias. E foi aí que eu me machuquei. No primeiro mês que precisei executar aquela tarefa, peguei quatro folhas do papel especial, do tamanho de uma folha de cartolina, tomei três folhas de carbono do tamanho do papel, intercalei os mesmos, grampeei e levei dois dias para datilografar tudo, com todo o capricho para não errar porque um erro tinha que ser corrigido em cada uma das quatro vias.
Ao término do trabalho, depois daquela respirada de alívio, tirei os grampos e fui examinar o resultado de tudo. Para minha grande surpresa, estava tudo bonito, só que eu havia colocado os carbonos ao contrário e as cópias ficaram nos versos das três vias seguintes. Passei uma grande vergonha mas fui consolado meu encarregado e futuro grande amigo, Manoel Ribeiro Soares que me disse ter cometido o mesmo erro em determinado momento e me deu mais dois dias para fazer tudo de novo.
O outro fato que marcou meu tempo ali foi mais trágico, pelo menos eu considero assim. Era quase o final de ano quando o Gerente de Administração aproximou-se da minha mesa de trabalho, pediu licença para me interromper e me apresentou um rapaz que estava com ele. Logo em seguida e sem muita cerimônia me disse:
- Gilberto, este moço é sobrinho do nosso Gerente de Produção, começou a fazer o curso de Contabilidade mas nunca trabalhou. Como você é o melhor profissional da área, queremos que você o ensine e o prepare nestes próximos sessenta dias, para que ele assuma a chefia do setor no começo do ano que vem.
Somente perguntei se futuramente, então, ele seria meu chefe. Como a resposta foi a que eu já sabia, nada respondi e pedi demissão sem cumprimento de aviso prévio na sexta feira seguinte.
A empresa perdeu um bom funcionário (segundo os colegas) e a equipe de futebol perdeu seu meia ponta de lança. Pelo que eu soube, e é assim que funciona, o técnico, os demais jogadores e a torcida, foram os únicos que sentiram minha falta.

07. Emprego ou futebol.


Durante todo o ano de 1967 eu trabalhei na Brastemp em São Bernardo do Campo, ao lado da Via Anchieta, com seu tradicional prédio, com seus jardins fronteiriços e suas palmeiras imperiais, luxo do fundador Sr. Miguel Etchenique, que atraíam a atenção de todos que passavam. A fábrica era, até há bem pouco tempo, ponto de referência na cidade. Quando alguém perguntava sobre qualquer endereço nas imediações logo alguém respondia:
- Fica ali, do lado da Brastemp.
Mais uma vez consegui este emprego através do Lemos que já havia se transferido para aquela empresa e que me apresentou à direção e pelo futebol que eu jogava; em um mês eu já era titular do time principal e já disputava campeonatos regionais.
Desta vez fui trabalhar na mesma área do meu amigo Lemos, que chefiava o Departamento do Pessoal, e onde exerci o cargo de auxiliar de pessoal. Aprendi muito rápido o serviço e melhorei todos os controles e arquivos. Minhas funções eram cuidar de todos os processos de admissão, eu recebia as pastas/prontuários dos novos funcionários, datilografava todos os documentos, tomava as assinaturas dos contratados e da chefia da área, inclusive Carteira de Trabalho e atualizava, diariamente, todas as estatísticas trabalhista, enviando relatórios para a Diretoria.
A Brastemp, na época, tinha cerca de 2.000 empregados e conseguia manter um ambiente privilegiado, todos se conheciam e se chamavam pelo nome. Eu, sempre detalhista, comecei ali a mania desenvolvida depois de conhecer e decorar tudo para tratar chefes e subordinados pelo cargo, pela chapa, pelo nome e pela área de trabalho. Era comum receber um operário no departamento e atendê-lo assim:
- Fala senhor Benedito, chapa 2345, da S-411.
- E é evidente que a pessoas se sentiam importantes e felizes. A partir daí adotei esta forma de tratamento em todos os lugares em que trabalhei. Eu me sentia muito bem trabalhando ali, apesar do sacrifício diário que fazia; tomava três conduções pela manhã e outras três, à tarde, para ir de casa ao trabalho e vice-versa.
O interessante é que hoje eu não consigo gravar mais nada na memória mas daquele tempo lembro-me até hoje da numeração de quase toda a empresa. Por exemplo a Estamparia tinha o código de S-41, sendo que a área de Prensas Pesadas era a S-411, a de Prensas Leves era a S-412 e a de Soldagem era a s-413. Depois a Funilaria era a S-42, a Pintura a S-43 e a Esmaltação a S-44. Na sequência, a S-45 representava a área de Linhas de Montagem, sendo a S-451 a linha de fogões, a S-452 a linha de lavadoras e a S-453 a linha de refrigeradores. Recursos Humanos levava a letra R, sendo o Pessoal R-10, Segurança R-20, Treinamento R-30, Salários R-40, Médica R-50 e Benefícios R-60, e assim por diante. E olha que estou falando de 48 anos atrás.
Este ano foi o primeiro em que não estudei. Havia terminado o Curso Clássico no ano anterior e não pude começar o curso superior que eu havia escolhido por que na região, no momento, só havia cursos durante o dia e eu, evidentemente, precisava trabalhar. Eu queria cursar Letras, motivado pela leitura dos escritores existencialistas, principalmente os franceses, entre eles Sartre, Camus, Jacques Prévert e vários outros, além de aprofundar nas teorias literárias.
Porém, para aproveitar o tempo ocioso, num belo domingo pela manhã, joguei pela Seleção de Mauá contra o juvenil do Corinthians no campo da Vidrobrás e recebi um convite do então técnico daquela equipe, o famoso Rato, para treinar no Parque São Jorge. A partir da semana seguinte, todas as terças e quintas feiras eu trabalhava até o meio dia e ia para o campo do Timão treinar, lembrando que sempre fui corinthiano. Aos sábados, livres para todos, eu trabalhava o dia todo na Brastemp para compensar as ausências.
Treinei até novembro daquele ano, sem ter chances de jogar, eram muitos os observados, quando o saudoso senhor João Candiev, meu gerente na época e grande amigo no futuro, chamou-me em sua sala, muito educadamente me disse:
-  Gilberto, nós todos da área e da empresa estamos muito satisfeitos com seu trabalho. Eu sei que você cobre religiosamente todas as horas em que você se ausenta para treinar mas isto está causando um certo mal-estar entre os outros funcionários pela constância do fato, portanto, sou obrigado a pedir que você escolha: O Emprego ou o futebol.
Parei de treinar na mesma semana, até porque sendo o mais velho de dez irmãos, meu salário era muito importante para a casa